B. O ORIENTE ANTIGO NO TERCEIRO MILÊNIO a.C.
1. A Mesopotâmia no mais antigo período histórico
A história, propriamente dita, começa no
remoto terceiro milênio. Quer dizer, entra-se pela primeira vez numa época que
é documentada por inscrições contemporâneas que podem ser lidas. O que não
acontece com os textos mais antigos, dos quais falamos antes.
Embora os textos arcaicos do
começo do período ainda apresentem dificuldades, os séculos seguintes oferecem
uma profusão de material, na maior parte inteligível para os especialistas.
a. A Idade Clássica sumeriana (Dinastia Antiga) — (aproximadamente 2850-2360).
— O alvorecer da história nos revela a civilização sumeriana fixada em forma
clássica.[1]
A terra era organizada em sistema de cidades-estados, na maioria delas muito
pequenas, algumas das quais nos são conhecidas apenas de nome.
Embora uma ou outra pudesse
impor-se a seus vizinhos, não existia unificação permanente e total da terra.
Com certeza tal coisa seria contrária à tradição e aos sentimentos — era mesmo
considerada como um pecado contra os deuses.
A cidade-estado era uma teocracia
governada pelo deus[2]; a
cidade e suas terras eram propriedades do deus; o templo, o seu solar. A vida
econômica era organizada em torno do templo, com seus jardins, seus campos e
seus depósitos. As pessoas, cada uma no seu próprio lugar, eram súditos, trabalhadores
na sua propriedade. O chefe temporal da cidade-estado era o “lugal" (grande homem); o rei, ou o
ensi, o sacerdote do templo local que governava como representante do deus, era
o administrador de suas propriedades. Este administrador podia ser ou um senhor
de uma cidade independente, ou um vassalo do lugal em outra cidade. A realeza, embora fosse absoluta de fato,
não o era em teoria. O poder era mantido pela sanção da eleição divina. Apesar
da tradição de que esta realeza era proveniente do céu, desde o princípio dos tempos,
há evidência de que era uma assembleia da cidade que detinha o governo e que a
realeza se originou desta assembleia, primeiramente como uma medida de
emergência, depois como uma instituição permanente.[3]
Por mais que este sistema tenha
sido falho em estabilidade política, ele tornou possível uma certa
prosperidade. A vida agrária e a vida urbana estavam intimamente integradas, caminhando
juntas para um grau considerável de estabilidade econômica.
As guerras, embora fossem, sem
dúvida, frequentes e bastante violentas, eram esporádicas e locais. Foi
essencialmente um tempo de paz, durante o qual a vida econômica pôde florescer.
A agricultura desenvolvida
permitia a manutenção de uma população crescente. A vida urbana, por sua vez,
permitia o aperfeiçoamento de uma maior especialização nas artes e ofícios.
As cidades, apesar de pequenas
segundo os padrões modernos, eram bastante grandes segundo os padrões antigos. Embora
na sua maioria as casas fossem humildes, eram numerosos os grandes templos e os
palácios.
Os trabalhos em metais e a
lapidação de pedras preciosas alcançaram níveis raramente ultrapassados.
Empregavam veículos puxados por bois ou burros para fins pacíficos e militares.
Os contatos culturais e comerciais tinham grande amplitude.
Em volta dos templos, floresciam
escolas de escrita, que produziam grande volume de literatura. Na sua maioria,
as narrações épicas e os mitos que conhecemos de cópias tardias, foram escritas
nessa época remota, embora transmitidos oralmente durante séculos,
anteriormente.
b. A religião dos sumérios.[4]
— A religião sumeriana era um politeísmo altamente desenvolvido. Seus deuses — embora
com considerável fluidez com relação a sexo e função — já nos tempos mais
remotos estavam organizados num panteão complexo de relativa estabilidade.
Chefe ativo do panteão era Enlil,
senhor da tempestade. O culto dos diversos deuses era praticado nas cidades
onde pensavam que eles tinham a sua morada. Nippur, centro do culto de Enlil,
gozava de uma posição neutra, recebendo oferendas votivas de toda a região, sem
se tornar jamais sede de dinastia.
Embora o prestígio de um deus se
elevasse ou decaísse de acordo com o prestígio da cidade na qual ele tinha sua residência,
não havia deuses locais, mas eles eram considerados como seres cósmicos, quanto
à sua função, e lhes concediam domínio universal.
A ordem dos deuses era concebida
como um estado celeste segundo o padrão de uma câmara municipal. A paz da ordem
temporal descansava assim num equilíbrio precário entre vontades conflitantes,
podendo ser abalada a cada instante.
A luta pelo poder sobre a terra
era também um processo legal no estado dos deuses. A vitória de uma cidade
sobre as outras representava a aceitação de suas exigências por parte de Enlil,
rei dos deuses. Qualquer calamidade que se abatesse sobre a terra refletia a
ira dos deuses, por causa de uma afronta ou pecado.
A função do culto era servir aos
deuses, propiciar a sua ira, e manter assim a paz e a estabilidade.
Os sumérios tinham um alto senso
do certo e do errado. As leis humanas eram para eles reflexos das leis divinas.
Embora não conheçamos nenhum código de lei nessa época, as reformas de
Urukagina de Lagash (vigésimo quarto século, aproximadamente) — que tomou
várias medidas de acordo com “as leis justas de Ningirsu”, no sentido de pôr
termo a várias espécies de malfeitos e injustiças, inclusive a exploração dos
pobres — ilustram que o conceito de lei é muito antigo.
Todavia, pode-se dizer que, como
acontece em todo o paganismo, os sumérios faziam pouca distinção entre as ofensas
morais e as ofensas puramente rituais.
c. Os semitas na Mesopotâmia. os acádios. — Os destinos das várias
cidades-estados sumerianas não nos interessam. Embora de vez em quando uma
dinastia local como a de Eannatum de Lagash (vigésimo quinto século), ou os Lugalzaggisi
de Erech (vigésimo quarto século) possa ter exercido um controle efêmero sobre
a maior parte da Suméria (Lugalzaggisi reivindica controle do Golfo Pérsico até
o Mediterrâneo) nenhuma delas conseguiu dar à terra uma unificação duradoura.
Entretanto, os sumérios não foram
os únicos povos a habitar na Mesopotâmia. Havia também lá uma população semítica.
Estes semitas são conhecidos como acádios, de acordo com a sede de seu primeiro
império.
Embora não haja evidência de que
eles tenham precedido os sumérios nas planícies do Tigre e do Eufrates, não
eram em absoluto recém-chegados à região. Não resta a menor dúvida de que eram
seminômades nas áreas ao norte da Suméria, desde os tempos mais remotos, e lá
se introduziram, em número crescente, desde o quarto milênio.
Por volta dos meados do terceiro
milênio, eles constituíam uma porção apreciável da população, e no norte a
porção predominante.
Estes semitas assimilaram a cultura
sumeriana em todos os seus aspectos essenciais e os adaptaram a si mesmos.
Embora falassem uma língua semítica (o acádio) inteiramente diferente do
sumério, eles admitiram a escrita silábica cuneiforme para fixar sua língua. Os
textos em acádio remontam à metade do terceiro milênio.
Eles adotaram também o panteão
sumeriano, embora acrescentassem deuses próprios e adaptassem nomes semíticos a
outros. E o fizeram com tanta frequência que é impossível distinguir os
elementos semíticos dos sumerianos na região mesopotâmica.
Quaisquer que tenham sido as
tensões existentes entre as duas populações, não há evidência de conflito
racial ou cultural.[5]
Não podemos mesmo duvidar de que tenha havido uma crescente miscigenação de
raças.
d. O império de Akkad (2360-2180, aproximadamente). — No vigésimo quarto século, uma dinastia
de governantes semíticos tomaram as rédeas do poder e criaram o primeiro verdadeiro
império da história do mundo.[6]
O fundador deste império foi Sargão, personagem cujas origens se perdem no mito.
Tendo sido elevado ao poder em Kish, ele derrotou Lugalzaggisi de Erech e
submeteu toda a Suméria até o Golfo Pérsico. Então, transferindo sua residência
para Akkad (de localização desconhecida, mas perto de Babilônia da última fase),
ele empreendeu uma série de conquistas que ficaram lendárias.
Sucederam a Sargão dois filhos
seus, e em seguida seu neto Naramsin, que podia gabar-se de bravuras tão
espetaculares como as de Sargão. Além da Suméria, os reis de Akkad dominaram
toda a Alta Mesopotâmia, como atestam as inscrições e os documentos comerciais
de Nuzi, Nínive, Chagarbazar e Tell Ibraq.
Mas o seu domínio se estendia,
pelo menos intermitentemente, do Elam ao Mediterrâneo, enquanto as expedições militares
se internavam nas montanhas da Ásia Menor, no sudeste da Arábia, e talvez mais
longe ainda. Os contatos comerciais chegavam até o vale do rio Indo .
Os reis de Akkad deram à cultura
sumeriana uma expressão política muito além das fronteiras da cidade-estado.
Embora preservassem a tradição de
que o poder derivava de Enlil, é provável que surgisse uma teoria de realeza um
tanto diferente.
O Estado não se centralizava no
templo do deus, como se tinha centralizado a cidade-estado, mas no palácio. Há certa
evidência de que os reis de Akkad se concedessem a si mesmos prerrogativas
divinas. Naramsin é pintado em proporções gigantescas, usando a tiara de pontas
dos deuses, e seu nome aparece com o qualificativo de divino.[7]
O triunfo de Akkad acelerou a
ascendência da língua acádia. As inscrições reais eram feitas em acadio e houve
considerável atividade literária nessa língua. Provavelmente o assim chamado
dialeto dos hinos épicos teve a sua origem nesse período.
Ao mesmo tempo, a arte, livre dos
cânones estandardizados sumerianos, teve um reflorescimento notável. Embora o
poder de Akkad fosse de curta duração, do ponto de vista como a história
considera esses períodos, ele durou mais de cem anos.
Fonte: BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978.
[1]
Sobre este período, veja C. J. GADD, in CAH, I: 13 (1962); M. E. L. MALLOWAN,
ibid., I: 16 (1968); D. O. EDZARD em BOTTÉRO, CASSIN, VERCOUTTER, eds., o.c.,
pp. 52-90; também as obras de S. N. KRAMER citadas na nota 11.
[2] Veja FRANKFORT, Biríb of
Civilization (em nota 16), pp. 49-77; idem, Kingsbip and the gods, The
University of Chicago Press, 1948, pp. 215-230.
[3] Cf. T, JACOBSEN, Primitive
Democracy in Ancient Mesopotamia, in JNES, II (1943), pp. 159-172; G. EVANS, in
JAOS, 78 (1958), pp. 1-11.
[4]
Veja J. BOTTÉRO, La religión babylonienne, Presses Universitaires de France,
Paris, 1952; E. DHOKME, Les religions de Bahylonie et d’Assyrie (mesma
publicação, 1949); S. H. HOOKE. Babylonian
and Assyrian Religión, Hutchinson’s University Library, Londres, 1953; T. JACOBSEN,
in The Intellectual Adventure of Ancient Man, H. FRANKFORT, et al., The
University of Chicago Press, 1946; ALBRIGHT, in FSAC, pp. 189-199. Mas veja
também A. L. OPPENHEIM, Ancient Mesopotâmia, The University of Chicago Press,
1964, c. IV e a seção sobre “Why a'Mesopotamian Religión’Should not Be
Written”.
[5] Veja
especialmente T. JACOBSEN, in JAOS. 59 (1939), pp. 485-495.
[6]
Naramsin conquistou Msgan (em textos tardios o nome do Egito) e entrou em
negociações com Meluhha (mais tarde, Núbia); alguns eruditos pensam que ele
conquistou o Egito (cf. SCHARFF- MOORTGAT, in AVA, pp. 77, 262ss., sobre
opiniões diferentes de dois autores). Porém Magan deve ser provavelmente
localizada no sudeste da Arábia (Oman), ao passo que Meluhha é provavelmente no
vale do Indo. Sobre o comércio com esta área no terceiro milênio, cf. A. L. OPPENHEIM,
in JAOS, 74 (1954), pp. 6-17; mais recentemente, G. F. DAI.ES, in JAOS, 88
(1968), pp. 14-23, onde (na nota 7) indica-se mais
bibliografia.
[7] Cf. FRANKFORT, Kingship and
the Gods, pp. 224-226; sobre o monólito de Naramsin, cf. PRITCHARD, in ANEP,
placa 309.